Isabel Jonet
ao serviço dos outros
Quando lhe falam em solidariedade, diz que é a caridade que a move. Quando lhe perguntam pela música preferida, diz que é o Wonderful World do Louis Armstrong. São estas as velhas trompetas que Isabel Jonet insiste em fazer soar na hora dos muitos prémios de Mulher do Ano, de Inovação, de Carreira, de Solidariedade ou de Direitos Humanos que lhe têm vindo a ser atribuídos – a si e às Organizações a que preside.
E quem a conhece sabe bem que não é só por teimosia ou por falta de ouvido que continua a insistir nestas e noutras músicas igualmente desconcertantes e fora de moda – como a recusa de protagonismo pessoal e a rigorosa independência política, económica, ideológica e confessional que orientam, desde a fundação, o Banco Alimentar, mas que a Isabel Jonet tem sabido garantir e estender à Entrajuda, que entretanto criou.
É que tal como a maravilhada cantiga de Armstrong, desvirtuada pelo uso melificado e castigada pelo espírito do tempo, a caridade, que a Isabel tanto gosta de contrapor à solidariedade, tornou-se um bem excedentário, um bem que as novas marcas tiraram das suas linhas de produção, um bem que, apesar de imperecível e imprescindível, ficou inexplicavelmente a sobrar. E é ao combate ao desperdício e à redistribuição de bens que sobram num lado e faltam no outro que a Isabel Jonet se dedica há 15 anos. Se à moderna Solidariedade lhe parece sobrar organização, sofisticação e engenho e faltar proximidade e entrega, à velha Caridade vê sobrar dedicação, simplicidade e proximidade e faltar organização, controle, rigor e astúcia. Por isso, para a mesma Isabel Jonet que tem trinta ideias por dia, não é preciso inventar nada: basta conjugar, reciclar, racionalizar, incentivar e potenciar o que há, juntar oferta e procura, gerir bem o Bem que sempre existe, abrindo-lhe espaço – e criativas brechas na lei e na sociedade – para que flua e se ramifique naturalmente.
Maria Isabel Torres Baptista Parreira Jonet nasceu em Lisboa a 16 de Fevereiro de 1960 mas “é de Elvas”. É casada e tem cinco filhos. Licenciou-se em Economia em 1982, na Universidade Católica Portuguesa e, entre Março de 1983 e Dezembro de 1986, trabalhou como adjunta na Direcção Administrativo-Financeira da Sociedade Portuguesa de Seguros. Em 1987, foi viver para Bruxelas para acompanhar o marido, Nuno Jonet, e integrou a Direcção Financeira da Assurance Générale de France. Ainda em Bruxelas e ainda em 87, mudou-se para o Comité Económico e Social das Comunidades Europeias onde esteve até 1993. No tempo que, não se sabe bem como, então lhe “sobrava”, pôs-se a aprender italiano, por achar a língua bonita, e viola, para perceber melhor porque é que, tendo jeito para quase tudo o resto, nunca acertara bem com a música. Talvez nunca pudesse vir a ser a mulher dos sete instrumentos, mas como sempre fora a dos sete ofícios, resolveu transformar a própria casa numa fábrica de petiscos lusos, montando, com considerável sucesso, uma empresa de catering. Tudo isto com três filhos pequenos e enquanto trabalhava no Comité Económico e Social.
Quando veio para Lisboa, em 1993, achou por bem deixar de trabalhar para acompanhar de perto a integração dos filhos no sistema escolar português. Entretanto, e no tempo que, mais uma vez, lhe “sobrava”, ofereceu-se como voluntária para o Banco Alimentar. Desde os doze anos que fazia voluntariado, primeiro só nas férias grandes e depois ao longo do ano, e o então recém-fundado Banco Alimentar Contra a Fome, de Lisboa fascinou-a. A decisão de prescindir de um trabalho “normal” e de uma carreira promissora e rentável para se entregar a um projecto não remunerado foi tomada em família. É que, embora no seu caso fosse financeiramente viável fazê-lo, a escolha implicou e continua a implicar a renúncia a muitos bens menores e a adesão conjunta e continuada a um exigente Bem maior.
Começou por se comprometer a trabalhar duas tardes por semana no Banco Alimentar, mas rapidamente passou às 8 horas diárias e depois a muitas mais. Em três meses fazia parte da direcção do Banco a que presidia o José Vaz Pinto e onde estavam o Padre António Vaz Pinto e o José Carlos Mardel Correia. Firmou desde logo com o Presidente uma sólida amizade de onde resultaria uma colaboração próxima, produtiva e coordenada. Foi dele que bebeu o espírito do Banco: o Banco Alimentar teria que ser como a água, insípido, incolor e inodoro, estritamente íntegro e isento, sem quaisquer cedências ao poder, a ambições de poder ou a sedes de protagonismo, e absolutamente contrário a aproveitamentos políticos, pessoais, confessionais ou outros. Nenhum dos voluntários poderia em circunstância alguma usar os produtos doados, uma maçã ou uma bolacha que fosse. Quando em 2003 o José Vaz Pinto se afastou da Presidência do Banco, por razões de saúde, a Isabel Jonet sucedeu-lhe, continuando sempre a ouvi-lo e a consultá-lo. Desde então e até hoje, sempre que abre um novo Banco Alimentar, telefona-lhe a dar-lhe os parabéns.
Conheci a Isabel Jonet em 1998, quando a minha vida profissional me permitiu desempenhar um papel mais activo como voluntário no Banco Alimentar. Então como agora era impossível ficar-lhe indiferente. Com simplicidade, sem falsas modéstias, e com um realismo prático e despachado, não se coibia, como se não coíbe, de se apresentar como a óptima cozinheira, a boa mãe, a grafóloga perspicaz e a excelente gestora que é – organizada, imaginativa e com visão de futuro, talhada para resolver problemas, congregar vontades, apagar fogos e atear projectos. Tamanha frontalidade e autoconfiança poderiam até ser desconcertantes se não se fizessem acompanhar por uma tocante humildade de fundo, por uma capacidade de promover a bonança nas tempestades, por uma atenção activa e de pormenor aos outros e, sobretudo, por uma entrega quase incondicional a uma causa maior de que sempre se soube e sentiu um simples instrumento entre muitos outros.
Quando, em 2001, depois da morte do José Carlos Mardel Correia e da Cristina Wagner, passei a fazer parte da direcção, já não como observador mas como membro efectivo, pude apreciar melhor a sua extrema atenção ao real e ao possível e a sua capacidade de reacção e de decisão.
A atitude de auscultação e de intervenção pronta e frontal que a Isabel Jonet tem perante a vida, estende-se à sua relação com os outros, ou é por aí que começa. E os laços que estabelece com todos os que com ela trabalham fazem-se de uma curiosa mistura de puro e firme profissionalismo e de proximidade caseira. No Banco, fez de tudo, desde ajudar a carregar paletes a ensinar a cozinheira, contratada para servir refeições aos voluntários que dão ao Banco um mínimo de cinco horas diárias. No princípio da época, é a Isabel quem faz as ementas para o ano inteiro. Dois dos seus cinco filhos, seguiram, a partir do colo ou do berço, as reuniões da direcção, e todos nos deliciámos – e continuamos a deliciar – com a sua sopa de beldroegas, favas com chouriço, pezinhos de coentrada e ameixas de Elvas.
Há na Isabel Jonet um esforço grande e uma propensão natural para nunca transformar as pessoas em números, apesar das muitas horas que tem que passar atrás do computador para cumprir um rigoroso programa de controle de custos, avaliação de desempenhos e definição de estratégias. Perder o contacto próximo e descurar a relação de confiança com as pessoas e com as instituições seria, para si e para os projectos em que está envolvida, inteiramente indesejável e resultaria num trágico afastamento da realidade.
O motor de acção da Isabel Jonet é uma fé profunda e comprometida num Deus que se fez próximo e que todos os dias se revela no próximo, bastando para tal que…nos aproximemos. Um Deus contrário a todo o desperdício de bens e talentos. Mas este é o seu motor, que não enjeita nem impõe, com a convicção de que, cada um, independentemente das suas crenças ou descrenças, pode, com pequenos gestos, contribuir para solucionar problemas e potenciar o Bem. E o Bem, gosta de sublinhar, “flúi naturalmente do Amor”, que é, essencialmente, “a atenção que dispensamos aos outros, sobretudo aos mais frágeis e desprotegidos”.
O Banco Alimentar e a Entrajuda, aos quais empresta a cara, o empenho e o talento, não são, sabe-o bem, obra sua: são obra de uma cadeia de boas vontades em que deixa de ser importante quem fundou o quê e quais os trabalhadores de primeira ou de última hora. São, sobretudo, diz-nos a Isabel, “obra do Espírito Santo”. E o Espírito – esse Supremo Voluntário que, sem cobrar nada, sopra onde quer mas também onde quer que lhe abram espaço – não a tem deixado ficar mal.
Louis Armstrong gravou em 1967 What a Wonderful World, a canção de Bob Thiele e George David Weiss a que emprestou a cara, o talento, a voz rouca e o trompete. A música, que correria mundo até chegar aos ouvidos da Isabel Jonet, resultara, curiosamente, de uma extrema atenção à realidade americana de então e fora expressamente pensada como um pequeno gesto concreto para contrariar a descrença num mundo tornado complexo, conflituoso e injusto e restaurar a esperança no presente e no futuro.
No ano anterior, e também nos Estados Unidos, o pequeno gesto de uma mulher que procurava restos de comida nos caixotes do lixo para alimentar os seus nove filhos e a atenção e a capacidade de reacção do Senhor John Fanhengel, tinham dado origem ao primeiro Banco Alimentar. Impressionado e comovido, Fanhengel aguçou o engenho para fazer face à necessidade daquela mulher, que era ali a cara e a figura de todos os necessitados, e pediu aos agricultores locais os restos das suas plantações de batatas. Em resposta ao seu pedido, viu-se a braços com vários camiões TIR cheios de batatas que distribuiu por associações de caridade. Resolveu então criar uma organização destinada a “ir buscar onde sobra para entregar onde falta”. E o que agora nos parece a lógica da batata foi um verdadeiro ovo de Colombo. Daqui proviria toda a actividade desenvolvida pelos Bancos Alimentares que, nos Estados Unidos e na Europa, iriam alimentar esta ideia, aplicando-a à realidade local. A mesma ideia que, já implantada em Portugal, chegara aos ouvidos da Isabel Jonet em 1993. Impressionada e comovida, continua até hoje a contribuir decisivamente para que a ideia de Fanhengel se expanda e se ramifique em novos projectos.
Os 13 Bancos Alimentares actualmente existentes em Portugal contribuem para a alimentação de mais de 210 000 pessoas, através das instituições caritativas e humanitárias que abastecem, e contam com a ajuda de cerca de 17 000 voluntários. Concorre para a idoneidade da Organização o facto de as suas contas serem anualmente auditadas por uma empresa exterior e de obedecer a regras estritas de controle, quer às instituições que fornece e que redistribuem os bens, quer ao seu funcionamento interno. Mas a actividade do Banco Alimentar Contra a Fome, que assenta na gratuidade, na dádiva, no voluntariado e no mecenato, é bem conhecida. Vou por isso aqui privilegiar a mais recente Entrajuda, a Instituição que, em 2005, a Isabel Jonet filiou ao Banco.
A Entrajuda nasceu da necessidade, sentida no terreno, de apoiar a nível de organização e gestão as instituições de solidariedade social com quem o Banco Alimentar colabora, com vista a melhorar a sua eficácia em benefício das pessoas carenciadas. Numa lógica mais estruturante e menos assistencialista, a Entrajuda fornece intervenções pontuais de “arrumação da casa”, de delineação de estratégias e de fornecimento de ferramentas de gestão às instituições que o solicitem, fazendo um diagnóstico dos seus problemas e necessidades, propondo e aplicando soluções, mobilizando parceiros e voluntários e avaliando impactos e desempenhos. A Universidade Católica Portuguesa e Universidade Nova de Lisboa são dois dos parceiros que recentemente se juntaram a esta iniciativa, incluindo-a nos seus programas de Mestrado. Na cadeira “Corporate Sustainability” são constituídos grupos de alunos que, durante dois meses, elaboram um projecto adequado às necessidades identificadas numa determinada instituição nas áreas de estratégia, organização e gestão financeira. Estão também a ser elaborados pela Entrajuda “pacotes de gestão e organização” prontos a adaptar às circunstâncias concretas das Instituições e que estarão acessíveis a todos os que os queiram utilizar.
À Entrajuda – Apoio às Instituições de Solidariedade Social, a Isabel Jonet foi e vai agregando outros projectos, que por sua vez vão originando programas em cadeia. Com o “Educar para a Cidadania”, vão-se lançando nas escolas sementes para o futuro – de sensibilização para a solidariedade, a gratuidade, o respeito pelo outro, a intervenção cívica. Com a “Saúde Solidária” garante-se uma assistência dentária continuada a crianças carenciadas identificadas pelas instituições (e são já 172 os dentistas voluntários envolvidos no programa “Dentes saudáveis”); o programa “Diabetes Controlada – Saúde Equilibrada” dirige-se ao público carenciado com mais de 40 anos e o “Sou todo ouvidos” vem agora ajudar a minorar o isolamento dos idosos.
Embora se desenrole “on line”, a Bolsa do Voluntariado é tudo menos “virtual”. A Bolsa é um dos mais recentes e inovadores projectos da Entrajuda e envolve todos os sectores da actividade económica e todas as organizações do sector não lucrativo e não governamental. Aqui se junta oferta e procura e se potencia um “mercado de voluntariado” dinamizando o encontro de necessidades e vontades. Neste seu primeiro ano de actividade, a Bolsa contou com 4.174 voluntários inscritos (a lista começa em Actor e termina em Web designer) que se oferecem para trabalhar em organizações não lucrativas, e 448 instituições que procuram trabalho voluntário.
E finalmente, o Banco de Bens Doados (BBD). A ideia surgiu da disponibilidade para doar bens não alimentares manifestada pelas empresas que regularmente fornecem o Banco Alimentar. Roupas, móveis, computadores, brinquedos, têm vindo a ser armazenados e redistribuídos às instituições a partir de um armazém na Quinta da Cabrinha. O bairro é problemático e os moradores da Quinta foram envolvidos no arranjo do armazém, na pintura dos prédios circundantes e até na assistência aos canteiros exteriores. No armazém, está já a funcionar uma oficina de Informática e de Marcenaria, que cumpre várias funções: consertar os bens doados, recrutar jovens locais para que possam aprender uma profissão (com a colaboração do Instituto de Emprego) e preservar o ambiente através da reciclagem.
A sustentar todas estas iniciativas está toda uma equipa de voluntários, funcionários, mecenas, parceiros sociais e a imprescindível colaboração no terreno das instituições caritativas e humanitárias. Mas por detrás de todas elas, está também a iniciativa, o trabalho e a entrega da Isabel Jonet, que não precisa de inventar nada porque vai aproveitando tudo e pondo tudo a girar no mundo do possível e do provisório. O resultado, é uma espécie de versão reciclada – talvez menos floral mas mais empenhada – do Wonderful World do Louis Armstrong.
Não me parece, por fim, desejável transformar aqui numa “Figura” quem sempre recusou protagonismo. É por isso como uma “Figura de Serviço” que gostava que a Isabel Jonet aqui ficasse. Alguém de especialmente capaz mas também de muito real e próximo que, com todos os seus defeitos e qualidades, escolheu estar ao serviço dos outros e deitar mãos à obra, e que por isso nos inspira e estimula. É assim que espero que aqui fique, para nos prestar mais um serviço, desta vez involuntário: o de ser a cara, não só do Banco Alimentar e da Entrajuda, não só dos inúmeros voluntários de todas as idades, raças, credos e classes sociais que ali prestam serviço, mas dos muitos milhares de anónimos que em Portugal e por esse mundo fora alimentam a ideia de ser para os outros e com os outros.